Ruy Guerraentrevistas

De volta ao campo de batalha
Neusa Barbosa




Poucos meses antes de completar 74 anos (nasceu em 22 de agosto de 1931)*, o cineasta Ruy Guerra exibe a energia de um guerrilheiro incansável. A imagem militante é reforçada pelos cabelos brancos revoltos e o indispensável charuto cubano sempre aceso entre os dedos. É sempre assim, entre longas baforadas de seus havanas, que Ruy discorre sobre suas paixões, como o cinema e a literatura, contando casos, desancando o que não gosta com uma veemência que, sintomaticamente, nunca atinge a raiva. Junto com Glauber Rocha, ele é pai do Cinema Novo, um dos movimentos mais viscerais da arte nacional, autor do pioneiro “Os Cafajestes” (1962), que registrou, ainda, o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. “Nunca soube onde acaba o erotismo e começa a pornografia. O que é o bom gosto?”, provoca.

Numa idade em que muitos se acomodam com homenagens ou se conformam apenas com o magistério (e ele também o exerce), Ruy ainda está no seu campo de batalha preferido, o set de filmagem. Acaba de realizar seu décimo-quinto longa metragem, “Veneno da Madrugada”, uma co-produção argentino-brasileira em que, pela quarta vez, adapta um livro do amigo Gabriel García Márquez (no caso, “La Mala Hora”). Já levou às telas também o trabalho de outros escritores, como Antonio Callado (de quem filmou “Kuarup”, em 1989), inspirou-se duas vezes em Chico Buarque de Holanda (“Ópera do Malandro” e “Estorvo”) e até mesmo em Edgar Allan Poe, transformando em minissérie na França seu conto “A Carta Roubada” (de “Histórias Extraordinárias”).

Não há coisa que ele goste mais do que escrever. Chega a afirmar que nunca quis ser cineasta, e sim escritor, mas um desvio do destino o levou para trás das câmeras. Não completa suas histórias confessadamente por mera preguiça. Ainda assim, não desistiu ainda de escrever um livro, que já tem até nome – “A Ciência e a Malandragem do Plano-Seqüência”. Como não quer escrever um texto acadêmico e não achou ainda o tom ideal, porém, não passou do primeiro capítulo.

Fica mais fácil para esse infatigável moçambicano, radicado no Brasil há décadas, dono de um sotaque macio e diluído, encontrar o fio condutor de histórias alheias, como a de García Márquez. Nesta entrevista, em São Paulo, ele encontrou o tom para falar de quase tudo, com uma lucidez extraordinária de um cineasta que é ao mesmo tempo professor e poeta.

Neusa Barbosa - Como você avalia o legado do Cinema Novo para o cinema brasileiro? Acha que sobreviveu alguma coisa?

Ruy Guerra – Eu acho que ficou muita coisa. Talvez a mais forte é aquela de que se fala menos, quer dizer, é o resgate de uma identidade. Acho que o Cinema Novo teve principalmente esse fator de resgate de uma identidade cinematográfica. É uma afirmação de uma identidade e como ela passa pela reformulação de uma linguagem, o Cinema Novo passa a ser extremamente revolucionário. Porque além dessa busca de uma linguagem, houve a recusa de uma linguagem-padrão. Esse fator-recusa eu acho que está presente ainda hoje. A identidade cultural do cinema tem de passar por uma linguagem própria.

NB - Mas o Cinema Novo não foi mais uma coisa de elite?

Guerra – De jeito nenhum. Ele não foi o fracasso de público que se diz. Embora não tenha atingido as classes populares, atingiu a juventude e os formadores de opinião. Naquela recusa da linguagem-padrão, havia uma postura política muito clara, inclusive de enfrentamento da ditadura. Inclusive eu, que dou aula na universidade (Gama Filho), acho que quem não pratica essa postura do Cinema Novo tem uma certa culpabilidade.

NB – Como assim?

Guerra - É sempre um parâmetro que não se pode negar. Ou se tenta abandonar, ou não, mas ele está sempre ali. É claro que as coisas só podem existir dentro de certos contextos. Eu não posso fazer “Os Fuzis” hoje. Embora naquela época ele fosse considerado complicado, hoje é quase didático, monolítico. Em compensação, hoje posso fazer “Veneno da Madrugada”, que é de uma complexidade extraordinária em relação a “Os Fuzis”.

NB - Em quais obras, ou quais cineastas, você vê a mesma recusa da linguagem-padrão do Cinema Novo hoje?

Guerra – Em “Um Céu de Estrelas”, da Tata Amaral, que tem uma das mais belas cenas de amor da história do cinema, dos irmãos Lumière até hoje.“Quase Dois Irmãos”, da Lúcia Murat. Adoro “Madame Satã”. O “Baile Perfumado” é irregular mas tem pujança nas propostas. Aliás, acho fundamental trabalhar junto com as dúvidas. Se você trabalha só com certezas, caminha para a mediocridade.

NB - E estes grandes sucessos da retomada, “Cidade de Deus”, “Carandiru”?

Guerra – Não gosto de “Cidade de Deus”, acho um equívoco. Percebo que a história é bem-construída mas não gosto daquele frenesi, acho muito videoclipado. Filmes como esse já se destruíram, duram apenas um momento. Ele diz uma coisa que é verdade mas não propõe nenhuma reflexão interna dentro do filme. Não vi “Carandiru”.

NB - E Walter Salles?

Guerra – Dele, o que mais gosto é “Terra Estrangeira”. Não gosto de “Central do Brasil” – acho o roteiro fabricado, um filme para exportação, maniqueísta, com personagens mal-resolvidos, até o da Fernanda Montenegro. Não gosto nem da fotografia. “Diários de Motocicleta” eu acho um avanço deslumbrante. É bem-filmado, mas fico um pouco perplexo com a ingenuidade do personagem do Che. Ainda assim, acho agradável, importante, bom, honesto, necessário, politicamente correto como o próprio Walter. Ele tem muito peso do Cinema Novo. Acho que ele vem evoluindo.

NB - Qual é seu conceito de cinema hoje?

Guerra – Me interessa mais fazer o filme da estrebaria do que do palácio. Não gosto do cinema antisséptico, gosto de ver o suor, a lama, a sujeira, o pingo de molho na cozinha. Acho que não teria coragem de fazer o filme que quero hoje.

NB- Por quê?

Guerra – Porque seria tão rigoroso que talvez muito poucos o quisessem ver. Não que me impressione o número de espectadores, mas sim a qualidade deles. Queria fazer um filme de US$ 10 milhões de dólares para 10.000 pessoas. Talvez houvesse entre eles cinco Kants.

NB - E na universidade, no curso de cinema, o que você ensina aos teus alunos?

Guerra – A primeira coisa que procuro é desintoxicar. Digo a eles, se você vem aqui para aprender a fazer cinema americano, como alguns querem, em duas horas te ensino. Não precisa fazer o curso. Já para ser cineasta brasileiro, precisa saber quem é e onde está. Senão, talvez podia ser botânico.

NB- E todas as inovações técnicas, a câmera digital, o que você acha que isso muda?

Guerra – As condições são cada vez melhores, a câmera é mais leve, dá rapidez para muitas coisas, mas o resultado é pior. Há necessidade de um suporte fisiológico para a criação. Não estamos preparados para toda essa virtualidade. Há uma defasagem do pensamento com a máquina. Com a câmera digital, é mais rápido experimentar do que pensar, mas pensar é importante. Por isso, estou lendo David Hume. A contradição do cinema é ele ser artesanal numa estrutura que se quer industrial. Por isso, no Brasil, prefiro o conceito de grande artesanato ao conceito de grande indústria.

NB - E esse teu novo filme, “O Veneno da Madrugada”, como foi que surgiu ?

Guerra – Este é um projeto que já existe há 21 anos. Outro dia encontrei um telegrama dessa época...Foi um filme que tentei fazer quando o Celso Amorim (atual Ministro das Relações Exteriores) era diretor da Embrafilme. Na época não foi feito, o tempo passou e agora se apresentou a oportunidade de retomá-lo. Talvez não existisse se não fosse a partir de um romance de Gabriel García Márquez.

NB - Era um sonho antigo, então?

Guerra – Na realidade, não. Naquela altura, quando o propuseram, era por causa da minha relação de amizade com o García Márquez. Cabeça de produtor é assim...Tudo bem que eu achava a história legal, apesar de considerar muito difícil sua parte final. Agora quando o retomei, continuava achando a história muito boa. E sendo boa e eu podendo adaptar como eu quero, tudo bem. Mas não pensei que seriam dez meses de trabalho. Dava tempo de escrever dois roteiros meus!

NB – Por que essa adaptação levou tanto tempo?

Guerra – Eu queria uma certa estrutura, com aqueles personagens, queria contar a história de outra maneira, diferente do livro. E para contá-la de outra maneira tinha de mudar muita coisa. E ao mesmo tempo não podia mudar as coisas que eu gostava. Eu sempre digo que o bom autor para se adaptar é o Shakespeare, principalmente porque está morto, aí não vem encher o teu saco! (risos).

NB - E o García Márquez interfere muito nas adaptações dos livros dele?

Guerra – O García Márquez é ótimo porque a primeira coisa que ele faz é se “suicidar”, quer dizer, ele como autor do romance ele desaparece, é bem iconoclasta em relação ao trabalho dele. Então, ele te deixa inteiramente à vontade para destruir e falar mal do autor, que é ele, ali presente, se for preciso. Então, na realidade, essa paixão pela literatura que eu tenho, ela é revelada por outros motivos, por outros caminhos. Eu acho que é uma boa história, que tem bons diálogos, tem uns personagens que me interessam, umas situações. Mas não é para aproveitar tanto a estrutura. É mais fácil montar. Um roteiro original eu ainda não escrevi...É melhor fazer um livro do Chico Buarque, do García Márquez, porque já foram escritos.

NB - E você não termina suas histórias originais por quê, falta de disciplina, preguiça, o que acontece?

Guerra – É tudo misturado. Na verdade, o roteiro é uma coisa que não devia existir. Existe por uma noção de trabalho coletivo, mas não devia existir. A gente devia ter uma idéia, pegar uma câmera com os atores e escrever este filme. Como é que escreve o filme? Com imagens. Então, inventar os diálogos, as cenas, tomar umas notas, uma estrutura. Claro, assim, o filme que devia ser feito em oito semanas leva seis meses...Então há, economicamente, condição de filmar dessa maneira. Embora eu tenho filmado uma vez de maneira parecida. “ A Queda”, por exemplo, só tinha uma lista de seqüências, não tinha nem diálogos escritos. Não tinha marcação de câmera. Os atores faziam o que queriam. Iluminava-se a casa toda. Dava-se o tema da cena, os atores começavam a improvisar. Só tinha uma limitação: não podiam sair da casa! E eu indicava ao câmera qual deles ele devia seguir. Aí, de fato, foi um filme escrito junto com a câmera.

NB - Mas demorou mais.

Guerra – Não. Foi feito em 22 dias de filmagem. A montagem também foi muito rápida. Ficamos com 26 horas. Levei dois meses para ficar com 6 horas, depois seis meses para reduzir para duas! Era bonito ser visto assim mas não havia condições de passar um filme de seis horas.

NB - Seu “Ópera do Malandro”, por outro lado, é bem trabalhado.

Guerra – De maneira geral, no set eu faço tudo muito marcado. Os planos são extremamente marcados, quadro a quadro. Mas é tudo inventado na hora. Eu não levo uma decupagem feita. Eu improviso a decupagem. Às vezes, eu tenho a grande linha já, sei por onde quero ir. Principalmente há obras, como “A Ópera do Malandro” e “Veneno da Madrugada”, quando você tem de construir cenários para a ação, você é obrigado a pensar no que é que você vai mostrar. Então você faz uma prévia. Não quer dizer que vc vai filmar exatamente daquela maneira. Mas uma decupagem básica você tem. Então, aqui você tem outro nível de improvisação. Por isso é que roteiro é um ponto de partida, não um ponto de chegada. Eu sempre digo que a gente não filma pra chegar ao roteiro. A gente sai do roteiro para chegar a outra coisa que é o filme. É só um ponto de partida. Mais adiante, esse roteiro não serve para nada. Como peça literária não vale nada.

NB – O que mais você pode adiantar sobre “Veneno da Madrugada”?

Guerra – Eu posso falar tudo menos a minha opinião sobre o filme, porque eu não tenho. Só não posso contar a estrutura do filme. A história não está localizada no tempo, nem em país nenhum, mas evidentemente, escrita pelo García Márquez, foi passada na Colômbia, num lugar quente. A história original se passa em vários meses mas eu adaptei para passar dois dias, de uma sexta para sábado e de sábado para domingo. É um lugar úmido, tropical, chove da primeira imagem até a última, todo o tempo, chuva torrencial, lama, numa pequena cidade do interior, as casas feitas de madeira e também de pau-a-pique, bem rústicas. E a história é que neste local, nesta cidadezinha isolada. O país está conturbado por guerrilhas em todas as montanhas. Essa cidadezinha está sob intervenção de um tenente com cinco ou seis soldados, na verdade, são jagunços, assassinos fardados. Nesse ambiente, em que todos estão habituados à corrupção, há um alcaide incorruptível. E isso cria um impasse, porque ninguém sabe o que ele quer. Além do mais, ele tem um ódio mortal à família dominante. E a cidade está em turbulência por causa dos bilhetes anônimos que estão aparecendo todas as manhãs nas portas e que não falam nada de política, só das fofocas. Coisas que todos sabem e fingem que não sabem. É tudo muita lama, muita chuva, muita sujeira, como eu gosto! (risos)

NB - Onde foi a filmagem?

Guerra – Eu procurei essa cidade por todo o Brasil. Fui ao Maranhão, ver Alcântara, que era lindíssima, fui à Bahia, vários lugares de Minas. Não consegui encontrar nada. Encontrava cidades coloniais, mas teria de encher as ruas de areia e arrancar bancos dados pelos patrocinadores à prefeitura, não dava. Então chegamos à conclusão que era melhor construir essa cidade, num lugar perto do Rio, que se chama Xerém, onde o Cacá Diegues filmou há muitos anos “Quilombo”. Era um lugar que chovia muito, até atrasou as filmagens do Cacá, mas prá mim era ótimo. O filme é 99% em planos-seqüência, por razões de estrutura. Eu tento fugir dos planos-seqüência, mas nunca consigo filmar assim! Mas esse não podia, porque é uma estrutura narrativa que tem repetições no tempo. Eu precisava que as seqüências não fossem rompidas com cortes para ter uma identidade maior. Às vezes, as seqüências se repetem, às vezes continuam. Se eu fizesse decupagem interna, fragmentando, com flashbacks, ficaria mais confuso. Então preferi usar a estrutura do plano-seqüência e precisava também de cenários onde fosse possível usá-los.

NB - Você filmou alguma seqüência em outro lugar?

Guerra – Só uma igreja, que ficava muito cara para construir internamente. Construí a parte de fora da igreja e o átrio. Mas tinha uma cena para a entrada do pessoal. Mas naquele dia fez sol e eu não podia esperar chuva para filmar nem fazer chuva artificial. Então os interiores foram feitos numa igreja velha em Caxias, que estava caindo aos pedaços e a gente ajudou a ficar mais velha ainda. Primeiro, encontramos uma igreja em Paraty, toda caindo aos pedaços por dentro. Era ótimo, estava tudo acertado. Mas na hora em que fomos filmar, saiu a verba para a restauração que eles esperavam há dois anos. Começaram as obras. Essa igreja de Caxias acabou sendo até muito melhor, porque ficava a 20 minutos de Xerém. Filmamos também uma pequena seqüência em Jacarepaguá, numa casa que era fazenda e que a cidade engoliu. E depois havia uma seqüência no rio, num barco, foi feita na Argentina. O resto foi tudo filmado em Xerém, com a chuva.

NB - Você já concorreu três vezes à Palma de Ouro em Cannes, a última vez com “Estorvo”. Já recebeu alguma sondagem com este filme?

Guerra – Já pediram para ver. Mas eu tenho horror a Cannes! Cannes foi bom há 20 anos atrás, tinha uma postura. Hoje é um equivalente ao Oscar, cartas marcadas, não no sentido do que o júri vai votar, mas em função dos filmes que escolhem. Escolhem o júri que gosta daqueles filmes, é tudo marcado assim, dominado pelos blockbusters americanos. É um festival que deixa muito a desejar. Mas é uma rampa de lançamento que os produtores adoram e dependendo dos jurados, eles também gostam. Como aconteceu há pouco tempo, com o Martin Scorsese presidente. Eu gostaria de ter um prêmio de um júri presidido pelo Scorsese, que tem uma obra que eu admiro. Agora, se for um júri que tem como presidente Tarantino ou Spielberg...

NB - Este ano, vai ser o Emir Kusturica.

Guerra – O Kusturica é interessante. Mas acho que este meu filme não é uma coisa que ele vá gostar...

NB - Ele gosta de uma coisa mais frenética...

Guerra – É. O meu filme é todo desconstruído, ele tem uma lentidão, não tem um frenesi que hoje é facilmente interpretado como modernismo, essa coisa de cortes muito rápidos. Meu filme é pesadão, não tem essa vestimenta da modernidade, ele é um filme malandro contra ele mesmo. Se tivesse essa linguagem, essa decupagem mais dinâmica, seria mais assimilável. Mas eu preferi fazer uma coisa mais subterrânea. Que não é a coisa do García Márquez, a literatura dele tem isso, ele sabe escrever para o grande público. Ele não faz uma linguagem pesada, os adjetivos são muito bem escolhidos mas é tudo muito econômico, muito filtrado, muito simples.

NB - Você conversa muito com os autores que adapta?

Guerra – Chego a conversar, mas nunca dei sorte. Porque uma vez quando estava para filmar o “Erêndira” perguntei ao García Márquez o significado de uma metáfora, tinha lá um estupro e na hora passava um peixe. “Lo que quieras”, ele me respondeu. Nunca mais perguntei mais nada!

NB - Mas vocês são amigos?

Guerra – Somos, há muitos anos. Com o Chico (Buarque), fiz a adaptação de “Estorvo”, dei para ele ler, ele leu e corrigiu minuciosamente alguns erros gráficos, mais nada. Uma colaboração muito vaga, né? Com o (Antonio) Callado, não tive oportunidade de fazer nada, porque não deu. Outra adaptação que eu fiz com o Edgar Allan Poe também não tive deu para encontrá-lo...(risos). O que eu adaptei mais foi o García Márquez, este é o quarto trabalho que faço a partir dele. O Eric Nepomuceno, que traduz quase todos os livros dele, está traduzindo o último, “Memorias de mis Putas Tristes” e já me disse que ali está um roteiro lindo, que eu tenho de filmar. Esse, só pelo título, já tinha vontade de filmar...

NB - Como você se relaciona com seus filmes antigos, costuma revê-los?

Guerra – Eu os vejo de dez em dez anos, por acaso. “Os Fuzis” não vejo há muito tempo. E eu esqueço. Acho que eu também tenho problemas com a memória.

NB – Que tipo de problemas?

Guerra - Tem essas coisas que são esquisitas na memória. Um dia, alguém me disse que eu devia ter uma memória visual muito boa. E eu digo: memória visual não tenho nenhuma! Eu trabalhei dois meses com o Mario Vargas Llosa fazendo a adaptação de uma historinha que depois ele roubou (“A Guerra do Fim do Mundo”, sobre a Guerra de Canudos). Trabalhei dois meses com ele num gabinetezinho em Barcelona. Estava há um mês e meio trabalhando assim e ele me diz: amanhã vem aqui um amigo meu do Peru. Chegou o cara no outro dia, começaram a conversar os dois peruanos e eu sobrei. E aí o amigo pergunta de um retrato que alguém fez do Mario. E ele diz que estava no escritório em que estávamos trabalhando. E eu penso: retrato? Que retrato? Como é que o Mario vai mentir? Não tem retrato nenhum. Aí levantei e fui olhar. De frente para onde eu sentava há quase dois meses tinha um retrato imenso, preto e branco, do Vargas Llosa. E eu nunca registrei aquele retrato! Se alguém me perguntar sobre os quadros que tenho na minha casa, não sei dizer.

NB - Como foi isso que o Vargas Llosa te roubou a história?

Guerra – Ele roubou a minha história toda. Personagens, história, eu é que mandei pra ele a documentação toda. Foi um produtor francês quem me propôs o nome dele. Claro que eu conhecia os romances dele. Eu vim a Paris, o conheci. Depois vim ao Brasil, fiz um levantamento de todo o material sobre Canudos. Não só “Os Sertões”. Pedi à Idê Lacreta (montadora de SP), ela fez uma documentação enorme de livros, até iconografia. Fomos a museus fotografar. Mandei tudo para ele para se informar. Depois eu fui para lá, eu tinha uma história, de ponto de partida, não tinha todos os incidentes, mas tinha a estrutura básica. E era a história de um velho revolucionário estrangeiro (ser escocês e frenólogo foi idéia dele, do Mário) que vem das guerras de Cuba e tem o ideal romântico da revolução. E chega e sabe do que está acontecendo em Canudos. E vai para lá para participar daquela revolução utópica. É um cara de certa idade e acha que é sua última possibilidade de concretizar o sonho de uma revolução.

NB - Tudo isso o Vargas Llosa roubou?

Guerra – Roubou-me os personagens, a história. Eu tentei filmar isto. A gente fez o roteiro, à última hora não foi possível filmar – cheguei até à preparação completa, elenco, as filmagens seriam em Santo Domingo – depois por uma série de fatores não pode ser feito. E ele um dia resolveu fazer o livro (“A Guerra do Fim do Mundo”) e fez declarações de que “Os Sertões” era uma paixão da juventude dele. Embora em entrevistas mais antigas tenha dito que nunca tinha lido sequer! E parece que não é o primeiro caso de um plágio dele. Ele tem um romance que é a história de um cara de rádio que anuncia catástrofes e alguém questionou a autoria disto.

NB - E você nunca buscou reparação disto?

Guerra – Tentei alguma coisa naquela altura mas eu não tinha dinheiro nem para tomar um cafezinho, quanto mais para processar um cara famoso no mundo inteiro. Quando perguntam sobre isso a ele, ele diz – eu não posso plagiar a mim mesmo. E eu nunca registrei a história antes, nunca pensei nisto.

*Esta entrevista foi originalmente publicada na Revista Bien’Art, em 2005.