Ruy Guerracronicas

A noite e seus bêbados
Ruy Guerra




Há uma hora em que a cidade encontra a sua alma. Mas a essa hora sós os bêbados estão acordados, e ninguém acredita em histórias de bêbados.

Eu conheci muitos bêbados, em muitas madrugadas, e confesso que nem sempre tive a paciência necessária para escutar a ansiedade atropelada de seus relatos compulsivos. Mais de que apenas cruzar com eles em encontros esporádicos, em bares de garçons sonolentos, tive alguns amigos que o avanço da noite ia transformando em seres cambaleantes, habitados de uma angústia compulsiva, frenética.

-Não sabe beber! - era o inevitável comentário pronunciado a meia-voz pelos prudentes cinderelas que se esgueiravam sabiamente para o conforto de suas casas, quando se anunciavam as doze badaladas do porre eminente.

Eu me deixava frequentemente fisgar para um penúltimo trago, a ser tomado no próximo bar. E de penúltimo em penúltimo a noite ia ficando menos criança e mais calada, cada vez mais dos gatos, do lixo e do desespero.

Mas não me arrependo.

Os bêbados me deram preciosas lições de vida, num sinuoso tecido de contradições e absurdos. As histórias que contavam vinham enroladas numa língua e numa lógica trôpegas, mas carregadas de uma emoção despudorada, em que o personagem principal - quase que inevitavelmente o próprio contador - não temia o ridículo de suas rasgadas confissões. Fui compreendendo que a violência dos sentimentos expostos, como fraturas, não vinha apenas do álcool, nem do sofrimento, mas também, e muito, da alma da noite. Um porre, em plena luz do dia, não tem essa dimensão trágica, como se o sol cauterizasse as filigranas mais íntimas da sensibilidade, deixando apenas visível a carapaça da dor, travestida de raiva. A cidade, durante o dia é desalmada, impaciente, cega, de tempos curtos, em que cabe apenas o cotidiano. Para sentimentos extremos, a cidade precisa da noite, com seu negrume, silêncios, cheiros, vazios e ambigüidades. E é preciso um bêbado, com sua fragilidade gritada aos quatro ventos, com sua arfante solidão, seu bafo de onça, seu pavor do amanhecer, para despertar sua alma e ser sua voz.

Sem o bêbado a noite esconde a alma e é igual ao dia, só que com sombras.

O bêbado usa o a bebida como um castigo e como uma ponte sobre o oco da noite, para atingir essa dimensão trágica, sem a qual não consegue se suportar.

-Ah, se seu pudesse começar logo no quinto uísque! - suspirava sistematicamente um desses bêbados profissionais no começo da travessia.

Cinco, eram a medida da sua inaceitável solidão. Cinco uísques eram o passaporte para a intimidade da noite.

Há bêbados e bêbados.

Há aqueles que esvaziam garrafa atrás de garrafa se afogando neles mesmos, sem mais. São os raivosos, briguentos, que derrubam as mesas dos bares, quebram copos e acabam carregados, meio inconscientes, empapados de álcool e urina. São insuportáveis na sua mediocridade e despertam sentimentos pequenos.

Fujo deles como o diabo da cruz.

E há os outros, mais raros, merecedores de respeito, que por vezes passam pelo estado de aqueles mas que se redimem da mesquinhez do álcool com suas histórias improváveis. São seres mediúnicos, de extrema fragilidade, que pagam com o fígado e o desprezo alheio a sua fugaz e despropositada grandeza. São o nosso lado escuro, a imagem que fica para além do espelho, de nossa parte de lobo e covardia..

Sem eles, sem seu sofrimento escancarado e suas histórias grotescas, não conheceríamos a alma da cidade. E a noite seria apenas dos gatos e do lixo.