Ruy Guerracronicas

Um cheiro de manga
Ruy Guerra




Sou um viciado em Brasil.

A cada qual a sua droga, e a minha é esta.

Ao nascer, os meus olhos vagos de neném assustado se tranquilizaram na meiga nebulosa de uma mãe branca e uma mãe negra.

Uma me pariu, a outra me criou.

Levei muitos anos para perceber que a raça trazia estigmas, para mim anulados no mesmo amor.

Não me sinto bem em países frios, de homens e mulheres louras, de pensamentos louros.

Na minha paisagem afetiva, e no meu pensamento, tenho uma necessidade imperiosa do cheiro insinuante de manga e do calor do sol tropical. E da presença negra.

Black is beautiful, sempre me pareceu um desses óbvios ululantes.

Eu sou do sul de África e trago orgulhosamente embutido em cada cromossoma da minha sensibilidade o gene da negritude, seja lá isso o que for.

Me passa frequentemente pela cabeça tentar imaginar as Américas sem o negro. Que continente triste, seria!

E fico preocupado com o meu egoísmo, que retroativamente parece aprovar a desumana odisséia da escravatura africana!

Quando cheguei ao Brasil, no exato dia de 9 de Julho de 1958, ocupei na primeira noite uma vaga no térreo de uma pequena pensão na Rua do Catete. Fazia um calor insuportável. Pela janela aberta a uma improvável brisa noturna, exigência dos meus desconhecidos companheiros de quarto, fiquei olhando o bonde passar estrondosamente pela minha cabeça, com os seus tardios viajantes ao alcance da mão.

Horas antes, o voo da Panair do Brasil, partido de Paris, depois de várias paradas, tinha aterrizado em Recife. Era apenas mais uma escala técnica e não tinhamos sido autorizados a baixar. Mas quando a porta do avião se abriu, junto com o cheiro morno e adocicado dos trópicos da minha infancia, o primeiro a surgir foi um negro, um dos encarregados da limpeza. Ele me sorriu, sem motivo, e eu soube que algo começava ali, naquele despropositado sorriso amigo, lambuzado de manga. Eu não sabia o quê, tudo era muito novo e confuso, era um incauto jóvem , com uns tostões no bolso, uma passagem de regresso e muitos sonhos. Como não sabia, quando meses mais tarde queimei por uns trocados o bilhete de volta à Europa, (o projeto imediato de filmar que me havia trazido desfeito), que estava marcando de uma forma definitiva o meu destino.

Só soube muito mais tarde, que me havia encontrado a mim mesmo, com as minhas contradições, naquele simples sorriso.

Nada se parece mais a um aeroporto que outro aeroporto, modernidades à parte. Assim, quando dias atrás, e décadas depois daquela primeira vez que pisei solo brasileiro, saltei em São Paulo, na escala para o Rio, me senti novamente em casa. Por que sempre trago a memória daquele sorriso.

A minha partida da Europa já tinha sido amaciada por uma semana em Havana, cidade tão brasileira quanto Salvador. Não conheço - e não sou o único a partilhar da mesma ignorância, dois países que se assemelhem tanto um outro como Brasil e Cuba.

Dois países que amo, como as minhas duas mães.

Não estou comparando dimensões, regimes políticos, idiomas. Estou falando de algo mais profundo, mais visceral.

Estou falando de dois sofridos países latino-americanos, distantes um do outro por milhares de milhas de terras e mar e por um processo político radicalmente oposto, identificados numa congénita alma gémea.

Lá, como aqui, os atabaques batem pelos mesmos orixás, amalgamados pela mesma colonização ibérica.

Lá, como aqui, os dois povos sofrem, com dinâmicas distintas, o peso esmagador da voracidade capitalista.

Lá, como aqui, o século parece querer terminar em dor.

Lá, como aqui, o cheiro forte de manga.

Não vou mais longe para não criar uma polémica.

Não afirmo de pedra e cal, mas creio que foi "No calor da hora", de Walnice Nogueira Galvão, um magnífico estudo sobre a imprensa brasileira, que eu me deparei com uma inusitada notícia num diário da época.

Cuba lutava então pela sua independência contra a colonização espanhola e o jornal noticiava o resultado de uma coleta pública no Rio de Janeiro. não me lembro se em outras cidades brasileiras, em que mulheres e homens anónimos, tinham contribuído entusiasticamente, em praça pública, com cruzeiros (seria?), alianças de ouro, jóias, para ajudar a luta de emancipação do povo cubano.

Apenas isso.

Por que ao fechar das luzes do século XIX, a gente de um país, tão imenso e convulsionado como o Brasil, se sensibilizou tanto pela luta daquela pequena ilha distante, perdida no azul caribenho?

Talvez tudo se explique apenas por um cheiro de manga.